"Era um cérebro instalado em um barco de carne e ossos ao sabor das ondas sociais, pronto a saborear as mais diversas paisagens como pano de fundo ao seu filosofar. Questionamentos de terceiros eram apenas o murmúrio do mar, assovios dos ventos." (Angústias de um peixe-voador)
Longe da exagerada ficção, as vidas de Maria, J.C. e Arthur estão, diria eu, aquém do cruel e indiferente real. É preciso encarar a vida sem o escudo confortável de um suposto Deus e o estelionato das promessas de paraísos pós morte. A duvidosa benesse de uma consciência fugaz, transitória, presente na inteligência rudimentar desenvolvida nos humanoides só tem produzido resultados desastrosos em relação aos outros animais que se desenvolveram neste mesmo planetinha vulgar; estimulamos e desenvolvemos a agressividade além corpo com armas de destruição, usamos a mente para manter um perpétuo cio superlotando a superfície terrestre além do que ela pode suportar em alimentos e usamos a filosofia equivocadamente partindo de bases frágeis e insanas que nos colocam como seres superiores. Não passamos de um corpo abobalhado e frágil arrastado aos trambolhões por um cérebro instável e desordenado, um computador primário infestado de vírus e sobrecarregado por arquivos inúteis e corrompidos.
Maria é uma catadora de lixo. Sem descrições supérfluas, assim a imaginação do leitor comporá o ambiente lendo o drama com o cenário que conhece, que acontece perto de si, que visualiza no dia a dia e cujo cerne desconhece ou finge não conhecer. Diariamente Marias morrem de inanição e doenças não tratadas, numa breve e trágica passada pela vida levando consigo toda uma história ignorada pelos demais distintos cidadãos.
Depois entre na mente do professor J.C. Raciocine em conjunto e acompanhe os passos lógicos e convincentes. Olhe para fora e veja um mundo perverso e ameaçador através da fragilidade do chip orgânico chamado cérebro, de uso contínuo, acumulando os arquivos fragmentados de sonhos desfeitos, ódios recalcados, medos, decepções e tristezas sem que seja feita no decorrer de sua vida útil uma manutenção efetiva, uma limpeza de disco, uma desfragmentação, um escaneamento com antivírus. J.C. é a vítima e o vilão também existe para todos nós que o adulamos, servimos, tentamos conquistar, enchemos-lhe de sorrisos e acenos mas é um monstro hipócrita, amoral, cruel, castrador, dissoluto, ditatorial: a Sociedade.
Por fim Arthur e o encarar do real com a coragem de virar as costas para os robotizados cidadãos bem-sucedidos. Via-se como um peixe-voador que havia nascido quando principiava a sair d'água para seu salto e que, momentos depois cairia novamente na inconsciência quando voltasse a tocar na superfície límpida, calma, indiferente de um mar infinito chamado Universo. Sabia que nesta reentrada por mais que se agitasse apenas provocaria alguns respingos que logo desapareceriam. Sabia que era nada e tudo ao mesmo tempo, pois era de Arthurs, pedras, árvores, água e tudo mais que era formado o Todo, peças intercambiáveis construindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur de uma qualidade duvidosa, a de, neste salto milimétrico e efêmero, fazer uso de uma consciência transitória, ver-se, sentir-se, observar. Era um pobre ser humano, a mais inútil das criaturas numa realidade igualmente inútil.
Aceite o desafio de sair de seu falso conforto psicológico e penetre no mundo miserável da cidadã Maria, na loucura do normal professor J.C. e na real crença do descrente Arthur. Não os veja como personagens fictícios, eles podem estar presentes em você.
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