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"O bom do livro é que quando ele acaba continua cheio e a gente pode ler de novo" (Joaninha,3 anos)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Livro de Graça na Praça






                          “Antes marido feio e laborioso que bonito e preguiçoso”



Gato escaldado tem medo de água fria e Rosa Maria embora acreditasse que águas passadas não movem moinhos, não meteria a mão na cumbuca novamente. Aquele malandro do atraente mas arrogante Pedrão arrastava-lhe a asa, não largava do seu pé depois de um namorico complicado nos tempos de escola. Mas nada como um dia após o outro e ele ficara para trás, iletrado, colecionando provérbios populares no barzinho, vivendo às custas dos pais e ela se formara, era agora a professorinha do lugarejo.

Pedrão queria Rosa Maria que se contentava com o Hermínio do cartório. Quem ama o feio bonito lhe parece e o fisicamente insonso funcionário era tido como intelectual, fazia seus versos, discutia literatura com ela, preenchia seu tempo vago. Iam tocando o burro da vida sem tombar a carrocinha, num relacionamento chove não molha...

Mas Pedrão não se conformava e insistia, não há rosas sem espinhos e água mole em pedra dura tanto bate até que fura, raciocinava ele. O problema era a tal de cultura do franzino rival, ginasial completo. De grão em grão Pedrão enchera o papo de ditados, citações e os usava para tentar impressionar sua desencantada musa, respostas pré fabricadas que nela entravam por um ouvido e saiam pelo outro.
- Pedrão, entenda, estou bem com o Hermínio, nosso caso passou, acabou!
- Nunca digas desta água não beberei, Rosinha...
- Desista!
- Quem espera sempre alcança...

A necessidade é a mãe das invenções e Pedrão dava tratos à bola para descobrir um meio de impressionar Rosa Maria, entrar no campo do adversário, a cultura. O tempo passava e ele não queria dormir na estação e perder o trem. Foi então que surgiu a grande chance:
- Ei, Rei dos Provérbios, olhe isso aqui! Na sua medida! E o Zé do Bar lhe estendeu o jornalzinho da comarca.
Na última página leu algo que caiu como colírio em seus olhos: 9º Concurso Nacional de Contos Livro de Graça na Praça da Academia Mineira de Letras, cujo tema “deverá estar relacionado com determinado ditado, provérbio ou locução popular, à escolha de cada autor.”
- Mamão com açúcar, está no papo -exclamou radiante- achei o caminho das pedras! Araruta também tem seu dia de mingau!
E devorou a notícia, não sem uma certa dificuldade:
- Raios, é aí que a porca torce o rabo, muita burocracia, um tal de envelope grande, envelope pequeno, correios, caracteres, laudas... Vou tentar, cobra que não anda não engole sapo. O tempo é curto mas antes tarde que nunca, vou perguntar sobre a tal de lauda lá na tipografia.
- Lauda é mais ou menos essa folha aqui preenchida, Pedrão, e aí diz no máximo 4 laudas, pode até ser uma só.
- Dos dois lados?
- Aí já não sei...
Pedrão já pensando em esticar as letras para encher linguiça, ponderava: é concurso mineiro, turminha de mão fechada, não tem prêmio em dinheiro mas a cavalo dado não se olha os dentes, quem ganha fica conhecido e a propaganda é a alma do bom negócio. É o que me interessa, mais vale um gosto do que dez vinténs e com fama de intelectual ganho Rosa Maria, dois coelhos com uma só cajadada:
- É ganhar a fama e deitar na cama!
- Mas primeiro tem que ganhar, não ponha a carroça na frente dos burros!
- A formiga sabe a folha que corta, conselho se fosse bom era vendido, não seja derrotista, passarinho que acompanha morcego amanhece de cabeça para baixo! Não há provérbio que eu não conheça, já está no papo!
- E se ganhar vai é gastar dinheiro, leia aí embaixo, eles tiram o corpo fora, não pagam nem cafezinho!
- E você acha que vou lá? Basta ter meu nome nos jornais, é melhor dormir sem ceia que acordar com dívidas!
E com esforço incomum começou a colocar no papel toda sua pretensa sabedoria, certo do direito que dá a César o que é de César e se o rival passava por ser um grande perfume em pequeno frasco, ele, fortão, ganhando o concurso seria um balde inteiro, cheio até a borda!

Por uma semana deixou até de jogar a sagrada sinuca vespertina, mas não se faz omelete sem quebrar ovos, suspirou filosoficamente o já autodenominado intelectual... Emendou uma série de provérbios sem maiores recheios mas dando-lhes uma sequência, formando um continho e depois de muito penar conseguiu preencher duas das tais laudas, espaço 2, pediu para uma tia corrigir e se deu por satisfeito, sentenciando: panela que muito se mexe ou sai insosso ou salgado. Envelope grande, envelope pequeno, pseudônimo de Trovador da Mantiqueira, conseguiu o carimbo dos Correios no último minuto do derradeiro dia para entrega dos originais. Depois sentou-se na indolência de seu dia a dia e esperou ser comunicado da vitória, afinal o sol nasceu para todos e não seria uma nuvenzinha chamada Hermínio que ofuscaria o grande astro-rei Pedrão...

A sorte é como o raio, nunca se sabe onde vai cair e a ingenuidade do texto mesclada com a petulância de ganhador por antecipação que no resumidíssimo currículo avisara que não compareceria à premiação, acabou divertindo a comissão julgadora, que talvez cansada de ler textos empolados, acabaram por concordar que afinal aquela obra sem qualquer sofisticação vernácula preenchia o que dela se esperava: distraia, divertia e sem dúvidas era um documento representativo da sabedoria popular. E como besteira pouca é bobagem, acabaram dando ao Pedrão o que era de César.

Telegrama da Academia, notícias em jornais e até uma entrevista com foto de terno, gravata e mão no queixo no semanário da comarca. Pedrão, o laureado escritor, deitou-se na cama da fama e esperou que Rosa Maria o procurasse, seria magnânimo com ela, afinal, perdoar é uma virtude dos fortes e depois de algum charminho a aceitaria de volta. Durante a gloriosa semana que se seguiu participou de algumas festas e reuniões onde ela também se encontrava e só a cumprimentou com a cabeça, respeitosamente e mantendo a distância. Queria que a jacaré sentisse que a lagoa estava secando. Empinou o nariz e esperou, esperou, mas ela aparentemente desconhecia a parte que deveria cumprir no plano unilateral. Depois soube que ela estava usando seu texto na escola, exaltando os alunos a desenvolverem a escrita e até colocara sua entrevista no quadro de recortes.

Presunçoso, acreditou entender o porquê dela não se aproximar: vergonha, timidez, afinal, agora ele era um intelectual famoso. Resolveu dar uma colher de chá para a professorinha que deveria estar sedenta de beber de sua sabedoria, acercou-se dela na saída da escola e certo do sucesso, foi direto:
-E ai, Rosa Maria, andei pensando, acho que já é tempo de acertarmos os ponteiros, vamos juntar os trapos?
Rosa Maria boquiaberta com o que ouviu, esbugalhou os olhos, deu uma sacudidela na cabeça e disparou:
- maluco Pedrão? Já falamos sobre isso, é assunto morto e enterrado! Estou com o Hermínio, ele me faz companhia, tem boa cultura, é um bom homem!
Pedrão, desconsertado com a inesperada recusa, caindo do cavalo ainda balbuciou:
- Mas eu também escrevo, você gostou do meu conto, eu sei, tem até usado na escola!
E o “Rei dos Provérbios” e das rápidas respostas pré fabricadas, ficou mudo ao assistir Rosa Maria parir ali mesmo, de bate-pronto, uma inédita e definitiva pérola:
- E por acaso para saborear um copo de leite é preciso gostar da vaca?

                                                                         fim...





domingo, 12 de julho de 2015

A música e a letra da Sinfonia Vida

Criamos um Deus e a Eternidade para acreditarmos
no Sempre e rejeitarmos a nós próprios.
De costas ao espelho do real.
O silêncio é a única música e os pensamentos a letra
compostos e regidos instantaneamente na Sinfonia Vida.
Só assim se é realidade.
Sem melodias que embalem;
sem drogas que entorpeçam;
sem trabalhos que distraiam;
sem doutrinas que confortem.
Basta apenas uma coragem sempre maior àquela que a natureza nos concedeu.
Queremos o Sempre e perdemos o Agora.

sexta-feira, 6 de março de 2015

O desventrar do ser social (Coletânea)

"Era um cérebro instalado em um barco de carne e ossos ao sabor das ondas sociais, pronto a saborear as mais diversas paisagens como pano de fundo ao seu filosofar. Questionamentos de terceiros eram apenas o murmúrio do mar, assovios dos ventos." (Angústias de um peixe-voador)

Longe da exagerada ficção, as vidas de Maria, J.C. e Arthur estão, diria eu, aquém do cruel e indiferente real. É preciso encarar a vida sem o escudo confortável de um suposto Deus e o estelionato das promessas de paraísos pós morte. A duvidosa benesse de uma consciência fugaz, transitória, presente na inteligência rudimentar desenvolvida nos humanoides só tem produzido resultados desastrosos em relação aos outros animais que se desenvolveram neste mesmo planetinha vulgar; estimulamos e desenvolvemos a agressividade além corpo com armas de destruição, usamos a mente para manter um perpétuo cio superlotando a superfície terrestre além do que ela pode suportar em alimentos e usamos a filosofia equivocadamente partindo de bases frágeis e insanas que nos colocam como seres superiores. Não passamos de um corpo abobalhado e frágil  arrastado aos trambolhões por um cérebro instável e desordenado, um computador primário infestado de vírus e sobrecarregado por arquivos inúteis e corrompidos. 

Maria é uma catadora de lixo. Sem descrições supérfluas, assim a imaginação do leitor comporá o ambiente lendo o drama com o cenário que conhece, que acontece perto de si, que visualiza no dia a dia e cujo cerne desconhece ou finge não conhecer. Diariamente Marias morrem de inanição e doenças não tratadas, numa breve e trágica passada pela vida levando consigo toda uma história ignorada pelos demais distintos cidadãos. 

Depois entre na mente do professor J.C. Raciocine em conjunto e acompanhe os passos lógicos e convincentes. Olhe para fora e veja um mundo perverso e ameaçador através da fragilidade do chip orgânico chamado cérebro, de uso contínuo, acumulando os arquivos fragmentados de sonhos desfeitos, ódios recalcados, medos, decepções e tristezas sem que seja feita no decorrer de sua vida útil uma manutenção efetiva, uma limpeza de disco, uma desfragmentação, um escaneamento com antivírus. J.C. é a vítima e o vilão também existe para todos nós que o adulamos, servimos, tentamos conquistar, enchemos-lhe de sorrisos e acenos mas é um monstro hipócrita, amoral, cruel, castrador, dissoluto, ditatorial: a Sociedade. 

Por fim Arthur e o encarar do real com a coragem de virar as costas para os robotizados cidadãos bem-sucedidos. Via-se como um peixe-voador que havia nascido quando principiava a sair d'água para seu salto e que, momentos depois cairia novamente na inconsciência quando voltasse a tocar na superfície límpida, calma, indiferente de um mar infinito chamado Universo. Sabia que nesta reentrada por mais que se agitasse apenas provocaria alguns respingos que logo desapareceriam. Sabia que era nada e tudo ao mesmo tempo, pois era de Arthurs, pedras, árvores, água e tudo mais que era formado o Todo, peças intercambiáveis construindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur de uma qualidade duvidosa, a de, neste salto milimétrico e efêmero, fazer uso de uma consciência transitória, ver-se, sentir-se, observar. Era um pobre ser humano, a mais inútil das criaturas numa realidade igualmente inútil.

Aceite o desafio de sair de seu falso conforto psicológico e penetre no mundo miserável da cidadã Maria, na loucura do normal professor J.C. e na real crença do descrente Arthur. Não os veja como personagens fictícios, eles podem estar presentes em você.