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"O bom do livro é que quando ele acaba continua cheio e a gente pode ler de novo" (Joaninha,3 anos)

domingo, 20 de julho de 2014

Inútil empáfia: somos apenas experiências de carona numa massa momentaneamente viva

Somos apenas um acúmulo de experiências aleatoriamente jogadas em recipientes orgânicos chamados cérebros pela loteria genética, complementados num curto tempo de consciência transitória chamada vida com o que vemos, sentimos, realizamos e armazenamos no DNA. Depois somos descartados e outro e mais outro irão nos sucedendo e somando. Os magnatas, os gênios, os mendigos, reis e escravos de outrora, desaparecidos, transformaram-se em elementos de construção de igual valor para novas formações, deles só o conhecimento impalpável mas gravado restou, em nós.

O cérebro que permite essa consciência transitória vai de carona num corpo extremamente vulnerável com membros que permitem a locomoção de um lugar para outro e a interação física com o universo e seus componentes orgânicos ou não e que permite a recolha de dados que se somam aos incontáveis registros de bilhões e bilhões de homens que pelo planeta passaram. Apenas mantemos o fluxo de vida, até agora sem nenhuma utilidade prática. Se o conjunto orgânico chamado homem utilidade tivesse, desnecessária se tornaria a reprodução, cada um seria uma peça em constante crescimento intelectual e aprimoramento físico, cada vez menos vulnerável. O fato de nos reproduzirmos demostra que somos apenas transportadores de experiências, para talvez um dia chegar a algo mais perfeito. Notem que nossa chamada vida se resume ao crescimento até o ponto de reprodução, que dura alguns anos e logo após inicia-se o declínio, apenas o tempo necessário para assegurar-se da proteção e crescimento das crias, os novos transportadores. Schopenhauer tem toda a razão: “o homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si.”

O acaso segura uma mangueira que molha o Nada. Nós somos as incontáveis gotículas que jorrando, formam o efêmero e inconstante arco...


segunda-feira, 7 de julho de 2014

Livro:Palavras Cínicas -de 1905- não envelheceu…

O português Albino Forjaz Sampaio, foi amado,odiado,elogiado e também ferozmente criticado em seu tempo. Sua obra Palavras Cínicas,escrita em 1905 foi recebida com espanto,acusações de estimular suicídios,”de subverter a moral vigente”mas tornou-se um dos livros mais vendidos em Portugal no século passado. Consegui meu exemplar há mais de quatro décadas e dele nunca me esqueci. Sem dúvida há exageros em suas palavras,mas também muita sinceridade,coragem e perspicácia ao conseguir visualizar as entranhas da comédia humana. Muitos de seus conceitos se aplicam perfeitamente aos vorazes e amorais humanos dos dias de hoje. Abaixo,alguns recortes das oito cartas que compõem o livro. Se as leres no meio dum festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar...
"...De que te hei de falar? Da vida?

A vida é a escola do cinismo. Trazes coração? Esmaga-o ao entrar como uma coisa que nos compromete, que nos avilta. Se acaso és bom - tolice - não venhas. Aqui, para triunfar, é preciso ser mal, muito mau. Sê mau, cínico,hipócrita e persistente que vencerás. Serás aclamado,respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma e do Sentir. Ri de tudo, que é preciso que rias. Abafa um protesto com um sorriso, uma agonia com uma gargalhada, um estertor com uma praga.

A satisfação de ver agonizar um canalha, quer ele seja um mártir, que ele seja um ladrão, é maior que a de sentir os braços opulentos duma mulher que se entrega.É menos um. Sê pois forte como o diamante e como o ódio.

Tudo é egoísmo. Se és bom morrerás como Cristo, se é um tolo morrerás como Judas, se és mau - meu amigo -serás lembrado como Satã.

Acredita que metade da humanidade nasceu para se rojar pela lama, para que tu, eu, todos os maus, todos os cínicos, a esmagássemos, e lhe cingíssemos fraternalmente as carnes com um chicote. Depois da morte há o Nada. Portanto,meu caro, aqueles que o sabem, o que pensam é em sugar a vida com um furor de agiotas sem entranhas. Isto é como no mar; já Shakespeare dizia que o “mugem vive para ser tragado pelo lúcio".

Ou serás vencido ou vencedor. Se vencido esperam-te todas as humilhações desde o desprezo até a compaixão. Se vencedor todos os triunfos desde o respeito ao Capitólio. Luta sempre, calado, fino, sabido que se não tens jeito para isto será um eunuco eterno,castrado para a Vida, para o Amor, e para o sonho.

Acredite que todos se vendem, homens e mulheres,palhaços e imperadores, cristos e mendigos: a questão é de preço e o preço sufoca todas as consciências, todas as revoltas.Acredita que falta quem compre toda a gente que se quer vender.

A geração é de cobardes e “ cada ano que passa está mais corrupto o mundo ( Maximo Gorki).

Foi em Dostoiwsky que eu encontrei um dia esta frase: “No fundo de cada um dos nossos contemporâneos residem latentes os instintos dum carrasco!”

A diferença que vai daquele bandalho, que passa de chapéu alto, àquele malandro, que pisca os olhos e pede esmola, não é nenhuma. Pura convenção. Se tu fosses buscar uma rameira de hospital e a toucasses de sedas ela arranjaria corte.Viriam a seus pés os famintos, as rascoas, os interesseiros, os honrados, os banqueiros, o mundo todo.

O rosto que ri não é o mesmo que chora? A boca que canta e ri não é a mesma que ameaça e insulta, que suspira, que geme e que reza? Os olhos não veem Deus e o Diabo? As almas não servem a ambos, atraiçoando ambos?

É preferível ver um cano de esgoto em toda a sua porcaria a uma alma em toda a sua intimidade. Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama é maior que a de todos os pântanos da terra.

À face da terra o homem não tem feito senão mal. Foi ele quem inventou os tronos e os altares, que fez a Verdade e a Mentira.

Se queres ser feliz sê, como eu, brutal na posse, canibal na ambição, sem uma aresta de apego a uma alma,pisando sempre, avançando sempre, crânio de sílex na energia, coração de sílex nas dedicações e nas torpezas.

A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde,depois é impossível. Tudo na vida é mudável, tudo na vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança será homem, o lacaio será senhor, o arbusto será árvore, o ontem será hoje, o bom será mal. Ai dos que param, ai dos vencidos!

A honra? A honra é uma fórmula, É pagar uma letra no seu prazo com dinheiro que se ganhou a traficar escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga; é roubar sem que o roubado acuse.Há mulheres sem honra que todos cortejam, virgindades imaculadas que todos desprezam.Religiões? A religião é uma comédia cuja representação já dura há séculos. Fez sucesso! é uma coisa fútil e extravagante que se parece com as histórias dos gnomos e das princesas encantadas. Quem a não tem,compra-a. Para que servem os padres senão para “ venderem Deus por grosso e a retalho”(Zola)

Sê sempre mau e faz sugerir aos outros que és bom, sê sempre torpe dizendo-te honesto. Nada de violências. Hipócrita, cauteloso e subtil, conseguirás tudo, serás tudo, terás tudo. Uma hora de amor duma casada, uma condecoração, um emprego, a confidência dum segredo que compromete, dum vício que aviltece.

Tudo se disputa. Somos um bando de corvos para uma caveira só.

A batalha da vida só tem duas fases: ou vencer ou fugir,porque para os vencidos não há piedade.O suicídio é lógico, é justo, é necessário. Para que se vive? Para sofrer? Onde existe a verdadeira felicidade, a verdadeira paz? Na morte. “Ali os ímpios cessarão de tumultos e acharão descanso os cansados de forças” (Bíblia).

Eu luto, eu sou forte, porque tenho a Morte pelo meu lado. E querendo eu morrer nem os homens nem Deus me poderiam impedir.

Que o suicida é um cobarde? Não, cobarde é quem atura isto até ao fim. Então uma criatura que entrou na vida e se vai embora, lá por não poder ou não querer pactuar com a torpeza dela é um cobarde? Então eu que piso, eu que falseio, eu que minto, é que devo ser louvado pela minha coragem? Cobarde é quem cobarde lhe chama.Pudesses tu ver bem a vida e verias se o suicídio não é a única porta que o homem arrombou ao céu.

Corri o mundo todo e por toda a parte vi a mesma desolação, a mesma luta, a mesma tragédia

Vi a morte cem vezes e cem vezes a achei preferível à vida.

Vi que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio dum festim, as porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te fizer chorar.

A vida é uma jornada. E todos os dias se anda um passo para a Morte."



Se acharam interessante,o livro é encontrado nos sebos e na net para free download. Filtrados os exageros,restará muita coisa para meditar. Não gostou da postagem,ficou deprimido? Albino Forjaz Sampaio responde por mim:

-Enchi-te de desolação e abandono. Que eu exagero? Mas isto ainda é pouco. A torpeza da vida não caberia em mil volumes como este. Que eu exagero?! Que eu Exagero?! Patife, tu bem sabes que eu digo a verdade!




O homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si: Schopenhauer, claro e direto, sobre uma ilusão chamada Vida

Os homens no decorrer de suas vidas costumam fugir de indagações que perturbam, refugiando-se nas mais diversas distrações e vícios -sempre fugazes como a própria vida- ou comodamente aconchegando-se covarde e irracionalmente no colo anestésico das religiões e de um suposto Deus. Uns poucos privilegiados em inteligência enfrentam a transitoriedade da existência retirando-se de cena e tornando-se observadores do Teatro Vida: os filósofos. Se muitos são difíceis de serem lidos e entendidos pelas nossas mentes normais, alguns são mais diretos em suas observações e conclusões mas são evitados por desconhecimento e preconceito, perdendo-se incríveis fontes de conhecimento que muito ajudariam àqueles que resolvem enfrentar as interrogações da existência humana. São pratos de que não nos servimos se não nos oferecerem. Saboreie os trechos claros e diretos de Schopenhauer abaixo e volte ao arroz e feijão das ilusões se conseguir... (os negritos são meus)

(...)Toda a nossa existência é fundamentada tão-somente no presente — no fugaz presente. Deste modo, tem de tomar a forma de um constante movimento, sem que jamais haja qualquer possibilidade de se encontrar o descanso pelo qual estamos sempre lutando. É o mesmo que um homem correndo ladeira abaixo: cairia se tentasse parar, e apenas continuando a correr consegue manter-se sobre suas pernas; como um polo equilibrado na ponta do dedo, ou como um planeta, o qual cairia no sol se cessasse com seu percurso.Nossa existência é marcada pelo desassossego.

Num mundo como este, onde nada é estável e nada perdura, mas é arremessado em um incansável turbilhão de mudanças, onde tudo se apressa, voa, e mantém-se em equilíbrio avançando e movendo-se continuamente, como um acrobata em uma corda — em tal mundo, a felicidade é inconcebível. Como poderia haver onde, como Platão diz, tornar-se continuamente e nunca ser é a única forma de existência? Primeiramente, nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade imaginária, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão; e, via de regra, no fim, é um náufrago, chegando ao porto com mastros e velas faltando. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou.

(...)As cenas de nossa vida são como imagens em um mosaico tosco; vistas de perto, não produzem efeitos — devem ser vistas à distância para ser possível discernir sua beleza. Assim, conquistar algo que desejamos significa descobrir quão vazio e inútil este algo é; estamos sempre vivendo na expectativa de coisas melhores, enquanto, ao mesmo tempo, comumente nos arrependemos e desejamos aquilo que pertence ao passado. Aceitamos o presente como algo que é apenas temporário e o consideramos como um meio para atingir nosso objetivo. Deste modo, se olharem para trás no fim de suas vidas, a maior parte das pessoas perceberá que viveram-nas ad interim [provisoriamente]: ficarão surpresas ao descobrir que aquilo que deixaram passar despercebido e sem proveito era precisamente sua vida — isto é, a vida na expectativa da qual passaram todo o seu tempo. Então se pode dizer que o homem, via de regra, é enganado pela esperança até dançar nos braços da morte!

Novamente, há a insaciabilidade de cada vontade individual; toda vez que é satisfeita um novo desejo é engendrado, e não há fim para seus desejos eternamente insaciáveis.

(...)A vida apresenta-se principalmente como uma tarefa, isto é, de subsistir de gagner sa vie [para ganhar a vida]. Se for cumprida, a vida torna-se um fardo, e então vem a segunda tarefa de fazer algo com aquilo que foi conquistado — a fim de espantar o tédio, que, como uma ave de rapina, paira sobre nós, pronto para atacar sempre que vê a vida livre da necessidade.

A primeira tarefa é conquistar algo; a segunda é banir o sentimento de que algo foi conquistado, do contrário torna-se um fardo.

Está suficientemente claro que a vida humana deve ser algum tipo de erro, com base no fato de que o homem é uma combinação de necessidades difíceis de satisfazer; ademais, se for satisfeito, tudo que obtém é um estado de ausência de dor, no qual nada resta senão seu abandono ao tédio. Essa é uma prova precisa de que a existência em si mesma não tem valor, visto que o tédio é meramente o sentimento do vazio da existência. Se, por exemplo, a vida — o desejo pelo qual se constitui nosso ser — possuísse qualquer valor real e positivo, o tédio não existiria: a própria existência em si nos satisfaria, e não desejaríamos nada. Mas nossa existência não é uma coisa agradável a não ser que estejamos em busca de algo; então a distância e os obstáculos a serem superados representam nossa meta como algo que nos satisfará — uma ilusão que desvanece assim que o objetivo é atingido; ou quando estamos engajados em algo que é de natureza puramente intelectual — quando nos distanciamos do mundo a fim de podermos observá-lo pelo lado de fora, como espectadores de um teatro. Mesmo o prazer sensual em si não significa nada além de um esforço contínuo, o qual cessa tão logo quanto seu objetivo é alcançado. Sempre que não estivermos ocupados em algum desses modos, mas jogados na existência em si, nos confrontamos com seu vazio e futilidade; e isso é o que denominamos tédio. O inato e inextirpável anseio pelo que é incomum demonstra quão gratos somos pela interrupção do tedioso curso natural das coisas. Mesmo a pompa e o esplendor dos ricos em seus castelos imponentes, no fundo, não passam de uma tentativa fútil de escapar da essência existencial, a miséria.

(...)O homem é apenas um fenômeno, não a coisa-em-si — digo: o homem não é [grego: ontos on]; isso se comprova pelo fato de que a morte é uma necessidade.

E quão diferente o começo de nossas vidas é do seu fim! O primeiro é feito de ilusões de esperança e divertimento sensual, enquanto o último é perseguido pela decadência corporal e odor de morte. O caminho que divide ambas, no que concerne nosso bem-estar e deleite da vida, é a bancarrota; os sonhos da infância, os prazeres da juventude, os problemas da meia-idade, a enfermidade e miséria frequente da velhice, as agonias de nossa última enfermidade e, finalmente, a luta com a morte — tudo isso não faz parecer que a existência é um erro cujas consequências estão se tornando gradualmente mais e mais óbvias?

(...)Quanta tolice há no homem que se arrepende e lamenta por não ter aproveitado oportunidades passadas, as quais poderiam ter-lhe assegurado esta ou aquela felicidade ou prazer! O que resta desses agora? Apenas o fantasma de uma lembrança! E é o mesmo com tudo aquilo que faz parte de nossa sorte. De modo que a forma do tempo, em si, e tudo quanto é baseado nisso, é um modo claro de provar a nós a vacuidade de todos deleites terrenos.

(...)A ideia de que não somos nada senão um fenômeno, em oposição à coisa-em-si, é confirmada, exemplificada e clarificada pelo fato de que a conditio sine qua nonde nossa existência é um contínuo fluxo de descarto e aquisição de matéria que, como nutrição, é uma constante necessidade. De modo que nos assemelhamos a fenômenos como fumaça, fogo ou um jato de água, todos os quais desvanecem ou cessam diretamente se não houver suprimento de matéria. Pode ser dito, então, que a vontade de viver apresenta-se na forma de um fenômeno puro que termina em nada. Esse nada, entretanto, juntamente com o fenômeno, permanece dentro do limite da vontade de viver e são baseados nesse. Admito que isso é um pouco obscuro.

Se tentarmos obter uma perspectiva geral da humanidade num relance, constataremos que em todo lugar há uma constante e grandiosa luta pela vida e existência; que as forças mentais e físicas são exploradas ao limite; que há ameaças, perigos e aflições de todo gênero.

Considerando o preço pago por isto tudo — existência e a própria vida —, veremos que houve um intervalo quando a existência era livre de sofrimento, um intervalo que, entretanto, foi imediatamente sucedido pelo tédio, o qual, por sua vez, foi rapidamente sucedido por novos anseios.

O tédio ser imediatamente sucedido por novos anseios é um fato também verdadeiro à mais sábia ordem de animais, pois a vida não tem valor verdadeiro e genuíno em si mesma, mas é mantida em movimento por meio de meras necessidades e ilusões. Tão logo quanto não houver necessidades e ilusões tornamo-nos conscientes da absoluta futilidade e vacuidade da existência.(...)



(The Emptiness of Existence, de Arthur Schopenhauer)

Não somos terráqueos, somos alienígenas de 2ª classe...

Serra da Mantiqueira, 3300ft above sea level, 05:00hs, encapotado, cachecol e café. Resmungando contra as civilizações avançadas...

Elementar... Pensem só um pouquinho, seus pseudos terráqueos egocêntricos... Desde que se conhece o homem neste planetinha, ele é obrigado a se comportar como um alienígena em terras estranhas, nas quais não vive naturalmente e sim procura se adaptar. Que raios de animal é esse que precisa da pele de outros para não passar frio? Que no inverno das regiões temperadas ou nas zonas eternamente frias e até nas noites dos tórridos desertos, tem que se aninhar ao lado de uma fogueira? Já fomos mais peludos, é verdade, mas nunca o suficiente para não morrermos por hipotermia, sempre necessitamos de complementos extra corpo. E como era nos primórdios, sem conhecimentos para a caça, sem a descoberta do fogo? Como o espécime humano, o animal peladinho e sem garras sobreviveu e se procriou? Impossível. Esse bípede desplumado, palermas geocêntricos, não é nativo, veio de outros planetas com temperaturas apropriadas onde a pelagem espessa não era necessária, já trazendo consigo o mínimo de conhecimento para sobreviver!

Mas espere aí, oh aspirante a filósofo interplanetário: se nós viemos de outros planetas, cadê a tecnologia que usamos para aqui chegar? Viemos de táxis que retornaram? É mais ou menos isso, cabeçudos, fomos trazidos em naves similares a Arcas de Noé... Já pensaram o porquê desta diversidade de tipos humanoides, bem diferentes em cor, tamanho, hábitos, enquanto os demais animais são mais uniformes dentro de sua espécie? Porque somos restos de planetas diversos, trazidos para cá não por vontade ou tecnologia própria, mas sim por civilizações superiores em operações mais ou menos parecidas como as que salvam animais de áreas que serão inundadas por lagos de represas em construção ou em zonas de catástrofes...

-Ei Joe, os planetas X, Y e Z estão prestes a se extinguirem, o quê faremos com os habitantes que possuem sinais de inteligência em desenvolvimento?

-Não podemos abandoná-los à sua sorte, mas para cá não vai dar para trazer, iriam sujar o planeta todo, arranje algum outro que tenha condições de vida para eles.

-Tem aquele pequeno, já com vida animal e vegetal a poucos anos-luz daqui, a Terra. Mas tem variações de temperatura letais para eles, peladinhos, além de animais enormes, dinossauros, que simplesmente pisarão neles sem tomar conhecimento...

-Faz o seguinte: mande lá a tropa, acabe com os dinossauros; quanto aos animais menores os humanoides já sabem se defender, apenas oriente como se abrigarem -lá cai água do céu- mas usando somente os meios existentes no planeta. Não esqueça do fogo ou morrerão de frio, lá tem oxigênio para ajudar queimar à vontade. Para não se estranharem, coloque o pessoal de X, Y e Z separados por boas distâncias.

-Falou, Joe, vou dar um jeito. Mas uma coisa lhe digo, esses tipos ainda vão acabar com o planeta Terra que ia tão bem sem animais inteligentes...

-Problema deles, já estamos fazendo muito em salvá-los da extinção, além disso manteremos expedições periódicas para acompanhar seu progresso. Mas sempre discretos, sem interferir, apenas alguma transferência de tecnologia quando se fizer necessário, um chipzinho ou outro...

-Vão pensar que somos deuses...

-É bom, manterá um pouco de ordem pelo temor ao incompreensível...


domingo, 6 de julho de 2014

"O reino deste mundo"de Alejo Carpentier: o casamento entre a razão e o fantástico

Lí finalmente a obra de Alejo Carpentier, ”O Reino deste mundo”. Razões ideológicas ranhetas de minha parte haviam deixado desprezado na estante este magnífico livro por anos. Carpentier,filho de europeus nascido em Cuba abraçou com ardor a revolução cubana e seu padrinho Fidel. Vá lá, mas não se pode negar o seu talento e principalmente o que Otto Maria Carpeux afirma na apresentação do livro: nunca houve o rebaixamento de sua arte para o nível de panfleto. Esse revolucionário autêntico também é um grande artista.

O desprezo por obras de escritores comprometidos ideologicamente, principalmente na ditadura Castrista, castrense & castradora me havia afastado do sabor forte, intenso que só a região caribenha tem e que foi literalmente copiada e colada por Alejo em suas páginas e talvez só ele, geneticamente europeu mas brotado, regado e se desenvolvido em Cuba poderia entender, visualizar e compor o viver, os pensamentos, crenças, tão díspares dos colonizadores e dos negros num romance onde, na história do vizinho Haiti, o real  é socado no pilão da racionalidade europeia com as pimentas da fantasia negra daquelas ilhas mágicas. Obra única por um autor único. Abaixo, uma pitada; os negritos são meus:

“...naquele momento,de volta à sua condição humana,o velho teve um momento de lucidez. Viveu, no espaço de tempo de uma batida de coração, os momentos capitais de sua vida...

...sentiu-se velho, velho de séculos incontáveis. Um cansaço cósmico, de planeta que o tempo fizera deserto de pedras, caía sobre seus ombros descarnados por tantos golpes, suores e revoltas. Ti Noel gastara sua herança, e apesar de ter chegado à extrema miséria, deixava a mesma herança recebida.

...e compreendia, agora, que o homem nunca sabe por que sofre e espera. Sofre, espera e trabalha para pessoas que nunca conhecerá e que, por sua vez, sofrerão, esperarão e trabalharão por outros que também não serão felizes, pois o homem deseja uma felicidade muito além da porção que lhe foi outorgada. Mas a grandeza do homem consiste precisamente em querer melhorar a si mesmo, a impor-se Tarefas. No Reino dos Céus não há grandeza a conquistar, pois lá toda hierarquia já está estabelecida, a incógnita solucionada, o viver sem fim, a impossibilidade do sacrifício, do repouso, do deleite. Por isso, esmagado pelos sofrimentos e pelas Tarefas, belo na sua miséria, capaz de amar em meio às calamidades, o homem poderá encontrar sua grandeza, sua máxima medida, no Reino deste Mundo.

O livro "A elegância do ouriço" e suas infinitas entrelinhas

Acabo de ler a magnífica obra de Muriel Barbery,um livro que tem uma singularidade: traz outra obra escondida nas entrelinhas, entrelinhas que superam as 350 páginas da edição brasileira da Companhia das Letras pois são infinitas,elásticas,que se adaptam à idade,inteligência e vivência do leitor. O que parece um romance é um guia que induz ao pensar, ao manejar do que parece óbvio aos nossos olhos, ao que nos é corriqueiro,através de uma mordacidade acetinada que nos surpreende e nos obriga a revisitar o prédio repleto de apartamentos de nossa vida em sociedade e os redecorar sem a máscara que inadvertidamente -inconscientes ou condescendentes- passamos a usar no dia a dia.

A leitura é obrigatória aos amantes da filosofia, aos contestadores e aos que pretendem que fórmulas manejadas ideologicamente possam modificar o complexo comportamento humano, primatas programados...

...a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado

...detesto essa falsa lucidez da maturidade

...a vida é absurda

...ser brilhantemente bem-sucedido tem tanto valor quanto fracassar. É apenas mais confortável

...somos seres vivos programados para acreditar no que não existe,porque somos seres vivos que não querem sofrer

...uma síntese de pensamento ali onde os discursos oficiais erguem tapumes e proíbem a aventura

...os homens vivem num mundo em que são as palavras,e não os atos,que têm poder...são os fracos que dominam...uma injúria terrível à nossa natureza animal,um gênero de perversão,de contradição profunda

Poderia me estender em frases que fui sublinhando, mas tenho em mãos um exemplar com centenas de marcas à caneta por tentar extrair as milhares de entrelinhas -que são minhas- e vocês,cada um,certamente terão outras,distintas. Vale a pena ser sacudido por esse presente da literatura moderna.
 
 

Erich M.Remarque e seus relatos de guerra: obrigatório para veteranos

Reli “Nada de novo no front” ou "A Oeste nada de novo" para os portugueses. Mais que um fantástico livro de guerra é um manual de psicologia guerreira que apesar das várias interpretações anti belicistas,ao contrário de provocar desagradáveis lembranças aos veteranos,reaviva o insuperável sentimento de camaradagem construído debaixo de fogo,impossível de se obter em tempos de paz entre os imperfeitos homens com seu egoísmo e vaidades. Muitos colegas se dividem entre a cautela de nunca demonstrar saudades dos anos de guerra,premidos pelos fracos tempos atuais do politicamente correto e as lembranças boas,fortes,viris que secretamente os deixam orgulhosos. Não há nada a esconder,foram grandes momentos que nos deram alicerces únicos. Como poucos gostam de se dedicar à leitura,mesmo de um livro tão conhecido e recomendado,selecionei alguns trechos que certamente se mostrarão familiares aos veteranos de guerra e os atrairão para essa obra prima da literatura mundial. Lamentarão as tragédias pessoais,as perdas,mas se recordarão de seus momentos puros de homens despidos da falsa casca,da máscara social,mesmo porque os anos passarão e,por fim,pereceremos todos.

Instrução básica:
Tornamo-nos desconfiados,impiedosos,vingativos e brutais – e isso foi bom,porque eram precisamente estas as qualidades que nos faltavam. Se nos tivessem mandado para as trincheiras sem esse período de formação,a maioria,sem dúvida,teria enlouquecido. Mas,assim,estávamos preparados para o que nos esperava.

...O mais importante,porém,foi que despertou em nós uma solidariedade firme e prática,que na linha de frente se transformou na melhor coisa que a guerra produziu:a camaradagem.

O Front:
...o front é um redemoinho sinistro. Quando se está em águas calmas,ainda longe de seu centro,já se lhe sente a força de aspiração que nos arrasta,lenta e implacavelmente,sem encontrar muita resistência.

O front não é nenhum quartel.

E principalmente o homem,o combatente:
…ao primeiro ribombar das granadas,recua no passado milhares de anos. É o instinto animal,que desperta em nós,que nos guia e nos protege.

Andamos sem pensar em nada...de repente estamos deitados em uma depressão na terra,enquanto acima de nós voam os estilhaços...mas a gente não se lembra de ter ouvido as granadas chegarem,nem de ter pensado em se deitar. Se confiássemos no pensamento,já seríamos um monte de carne espalhada por todos os lados.

Dois anos de tiros e granadas...não é algo que se pode despir,como uma roupa.

É este acaso que nos torna indiferentes.
...Cada soldado fica vivo apenas por mil acasos

Tornamo-nos animais selvagens. Não combatemos,nos defendemos da destruição. Sabemos que não lançamos as granadas contra homens,mas contra a Morte,que nos persegue,com mãos e capacetes.

Uma raiva louca nos anima,não esperamos mais indefesos,impotentes,no cadafalso,mas podemos destruir e matar,para nos salvarmos...

...ficamos estendidos,ofegantes,descansando,sem falar. Nossa exaustão é tanta que,apesar da terrível fome,nem pensamos nos enlatados. Só pouco a pouco vamos nos transformando novamente em algo parecido com seres humanos.

Só uma coisa nos conforta:ver que há outros mais fracos,mais abatidos,mais desamparados,que nos olham com os olhos esbugalhados,como se fôssemos deuses que muitas vezes conseguiram escapar da morte.

Exatamente como nos transformamos em animais quando vamos para o front,porque é a única maneira de nos salvarmos,nos tornamos humoristas e vagabundos quando estamos descansando.

Em parte,já estamos acostumados:a guerra é uma maneira de morrer,como o câncer e a tuberculose,como a gripe e a disenteria.

Somos soldados,e só depois,de uma maneira estranha,quase envergonhada,é que somos indivíduos.

Há entre nós uma grande fraternidade,algo do companheirismo das canções do povo,um pouco do sentimento de solidariedade dos prisioneiros e da desesperada lealdade que existe entre os condenados à morte

...Se quiséssemos atribuir um valor a isso,numa classificação,teríamos que dizer que é ao mesmo tempo heroico e banal. Mas quem perde tempo com coisas desse tipo?

A vida,aqui nas fronteiras da morte,assume um aspecto de grande simplicidade,se limita ao essencial,ao que é estritamente necessário;todo o resto é envolvido por um sono profundo.

Despertou em nós o sentimento de companheirismo,para que pudéssemos escapar ao espectro da solidão;emprestou-nos a indiferença dos selvagens,a fim de que,apesar de tudo,sentíssemos a cada momento o elemento positivo,e o armazenássemos contra o ataque do Nada.

Ressuscitarão os dias,as semanas,os anos de trincheira,e nossos companheiros mortos se levantarão para marchar conosco;nossas mentes estarão lúcidas,teremos um objetivo,e assim marcharemos,com os companheiros mortos ao nosso lado,os anos de front como retaguarda. Contra quem? Contra quem marcharemos?

E as pessoas não nos compreenderão

Seremos inúteis até para nós mesmos. Envelheceremos,alguns se adaptarão,outros simplesmente se resignarão e a maioria ficará desorientada;os anos passarão e,por fim,pereceremos todos.

Levanto-me.
Estou muito tranquilo. Que venham os meses e os anos:não conseguirão tirar mais nada de mim,não podem me tirar mais nada. Estou tão só e sem esperança que posso enfrentá-los sem medo. A vida,que me arrastou por todos estes anos,eu ainda a tenho nas mãos e nos olhos. Se a venci,não sei. Mas enquanto existir dentro de mim – queira ou não esta força que em mim reside e que se chama Eu – ela procurará seu próprio caminho.
 
 

Diálogo com a vida - Shakespeare

Lendo "Medida por medida" (Edições Melhoramentos, 1958, tradução de Carlos Alberto Nunes) ato III, cena I, encontrei um magistral diálogo com a vida que aqui transcrevo para meditação dos leitores. Cenário: um quarto na prisão. (os negritos são meus)
 
CLÁUDIO — Aos infelizes resta um só remédio: a esperança. Espero ainda viver, mas estou pronto para a morte.
 
DUQUE — Contas certo com a morte; desse modo, tanto ela como a vida se tornarão mais doces. Dialogai com a vida deste modo: Em te perdendo, perderei o que os tolos, tão-somente, cuidam de preservar.
Só és um sopro submetido às influências mais variadas do tempo, que visitam a toda hora tua casa com aflições. És simplesmente um joguete da morte, pois só cuidas de evitá-la e não fazes outra coisa senão correr para ela.
Não és nobre, pois quanto de conforto podes dar-nos, se nutre de baixezas; nem valente podes chamar-te, ao menos, pois tens medo do dardo brando e frágil de um gusano mesquinho. Teu melhor repouso é o sono, que invocas tão frequente; no entretanto, mostras pavor insano de tua morte, que outra coisa não é.
Tu não és tu, pois vives em milhões de grãos nascidos da poeira. Feliz, também não és, pois só cuidas de obter o que te falta, olvidando o que tens.
Não és constante, porque tua compleição, segundo as fases da lua, está sujeita a variações. Se és rica, és pobre; porque tal como o asno vergado sob o peso de tanto ouro, só levas tua riqueza uma jornada, vindo a morte, depois, descarregar-te.
Amigos não possuis, porque tuas próprias entranhas, que por mãe te reconhecem, e até mesmo o que os rins verter costumam, o reumatismo, as úlceras e a gota te amaldiçoam por não darem cabo logo de ti. Não tens nem mocidade nem velhice, não sendo, por assim dizer, mais do que um sono após a sesta, que sonha com ambas, porque a tão ditosa juventude envelhece à força, apenas, de suplicar esmolas à impotente decrepitude.
Quando és velha e rica, careces de afeição, calor, beleza, que os bens te tornem gratos. Que merece, pois, o nome de vida nisso tudo? Mais de mil mortes essa vida oculta; no entanto temos tanto medo à morte, que é o que, no fim da conta, tudo iguala.
 
CLÁUDIO — De todo o coração vos agradeço. Desejando viver, agora o vejo, só procurava a morte, e, nesse empenho afinal, acho a vida. Pois que venha!
 
 
 
 

A opção pela morte



A opção pela morte é um direito que a hipócrita sociedade e o onipresente Estado condenam, mas para exasperação de ambos não pode ser punida. O homem pode escolher o momento de bater a porta e sair e embora o assunto seja quase um tabu essa possibilidade, esse poder concedido a todos que tenham suficiente inteligência, clareza de pensamento sem a contaminação de doutrinas, regras, conceitos alheios, tem um imenso poder de alívio, de moderação, de força para seguir adiante debaixo das intempéries mais cruéis impostas pelo viver consciente e paradoxalmente não escolher -nos piores momentos- a morte. Esta opção fica -aos pensantes- para os momentos de calmaria após as tempestades, muitas tempestades que aos poucos foram encharcando até aos ossos do custo-benefício racional, determinantes na resposta ao mestre de cerimônias que rege o tempo decorrido e o restante:

E então, você para ou continua?!

O encharcado humano que escolhe continuar é saudado pelos comodamente secos que o cercam com movimentos afirmativos de cabeça, aplausos, tapinhas nas costas. Depois todos se afastam com seus largos guarda-chuvas e o pobre esquecido continua ali, com a água do abandono, da inutilidade a escorrer pelos cabelos… O que grita claro e forte, pois nesta opção não há titubeio – eu paro!- provoca a fúria da plateia, recebe uma avalanche de vaias, apupos que nada mais são que mãos estendidas para segurar a presa que lhes escorrega entre os dedos, escapa com a mordida dolorosa da contestação:

-idiotas, eu apenas estou indo à frente, logo me seguirão…

O que são 10, 20, 80 anos num tempo infinito? Nossa diferença para os efemerópteros, que não duram mais que 24 horas é que somos dotados com um cérebro usado apenas para negar essa evidência mais que constatada. E o tempo de vida de ambos -humanos e insetos- proporcionalmente ao universo, pode ser considerado para um observador distante e isento como absolutamente igual.

Portanto, use sua vida com audácia, brilho e independência total dos homens e dos deuses com a consciência, com a tranquilidade de saber que não existem contratos assinados, que sua permanência no recinto deste planetinha só depende de sua vontade. Se o espetáculo não agradar, sair é um direto seu, ato que só é execrado pelos covardes e irracionais porque, sempre correndo ao lado dos ridículos pretensos vencedores de alguma coisa em vida, adornados com louros na cabeça, a realidade lhes sussurra continuadamente aos ouvidos:

-você é apenas… um cadáver adiado que procria!


Humanos: os animais descaracterizados e infelizes

Sépia sobre foto de Andy Clark/Reuters

Talvez ainda existam alguns pequenos grupos de animais da espécie humana em regiões de difícil acesso no planeta Terra. Mas a esmagadora maioria foi descaracterizada, são hoje apenas um subproduto da sociedade, que criada pelos próprios humanos, cresceu e assumiu o controle. Os seres humanos já há alguns séculos não são mais que um infeliz urso de circo, adestrado para atos contrários à sua natureza para angariar aplausos que lhe são inúteis…

Diferente da vida primitiva e natural, o homem de hoje não é mais um animal idêntico ao que marcha ao seu lado em busca de caça mas peça anônima de um conjunto de atitudes elaboradas por ele mesmo durante milênios. A cada ato nosso estamos usando a acumulada experiência, criatividade, os sonhos, as verdades descobertas, as mentiras disfarçadas, a vaidade, a bondade ou a maldade de outros que antes de nós pela vida passaram. Se o urso não é retirado de seu habitat ele viverá sempre como os de sua espécie, geração após geração; se ele é retirado da natureza e torturado até aprender que deve seguir regras a cada apito ou chicotada, agir sempre da forma solicitada por alguém mais poderoso e temido, ele deixa de ser um animal, é apenas uma massa viva que funciona de maneira artificial.

O próprio Homem criou o circo – a Sociedade- e o chicote -as leis e regras não escritas- e hoje, equilibrado num monociclo, gira inutilmente em torno do picadeiro Vida. Cada um representa seu penoso papel para conseguir com dificuldades diversas e em porções desiguais o que a natureza lhe destinara em igualdade na matilha: acordar, buscar comida para si e a prole, deitar ao sol na metade do dia, enrodilhar-se na caverna ao entardecer com a família…



sábado, 5 de julho de 2014

Livro "Angústias de um peixe-voador"



…O mais patético dos animais, o Homem-peixe-voador, neste salto de um segundo de consciência transitória coleciona tudo o que pode amealhar, penas ao vento, grãos de poeira, alguma folha que porventura esteja a boiar na superfície. Esbarra no peixe que salta ao lado, toma-lhe a frente. E depois se dissolve na água com alguns respingos que rapidamente desaparecem. Se no micro momento antes de tocar a cabeça no oceano do Nada perguntássemos a cor do maravilhoso céu que acabara de percorrer, não saberia a resposta…

…Transitoriedade é a palavra que bem definia Arthur porque assim se sentia: um ser passando de uma forma para outra. Via-se como um peixe voador que havia nascido quando principiava a sair d’água para seu salto e que, momentos depois cairia novamente na inconsciência quando voltasse a tocar na superfície límpida, calma, indiferente de um mar infinito chamado Universo. Sabia que era nada e tudo ao mesmo tempo, pois era de Arthurs, pedras, árvores, água e tudo mais que era formado o Todo, peças intercambiáveis construindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur de uma qualidade duvidosa, a de, neste salto milimétrico e efêmero, fazer uso de uma consciência transitória, ver-se, sentir-se, observar. Era um pobre ser humano, a mais inútil das criaturas numa realidade igualmente inútil.

…Era um cérebro instalado em um barco de carne e ossos ao sabor das ondas sociais, pronto a saborear as mais diversas paisagens como pano de fundo ao seu filosofar.

…Vivemos o presente ou estamos no passado, perseguindo nossas ações físicas, mais rápidas que o processamento em nosso cérebro? Podemos ter avançado no espaço e o tempo de computação de nossos atos realizados, ou seja –da vida- ser mais lento e até mesmo processar-se somente após ter se liberado do corpo físico, ou seja –da morte! Podemos estar mortos, lentamente somando os dados em ondas mentais soltas no universo e só agora tendo noção do que fizemos. Uma premonição, por exemplo, seria apenas uma onda que se adiantou dentre as demais…



Livro "A conspiração de Santo Antonio do Desamparo"


Paranoia. S. f. Psiq. Psicopatia, de que há várias formas clínicas, caracterizada pelo aparecimento de ambições suspeitas, que se acentuam, evoluindo para delírios persecutório e de grandeza estruturados sobre base lógica. (Aurélio)
Tudo o que sabemos doutrem é através de informações do próprio e deduções a partir de seu comportamento. Não conhecemos verdadeiramente ninguém. Você sabe o que se passa dentro da casa de seu vizinho? Você sabe o que se passa dentro da mente de seu cônjuge?
Abra essa obra. Não se trata de um livro e sim da porta para o interior de uma mente alheia. Entre, raciocine em conjunto e acompanhe os passos lógicos e convincentes da vítima. Olhe para fora e veja um mundo perverso e ameaçador…

O professor JC :


“…Não dá mais, urge deixar anotado, de alguma forma alguém tomará conhecimento do que estão fazendo comigo caso passem à violência e eu apareça morto. Falo dos psicopatas que me cercam e vigiam.
Estou muito à frente dos que me cercam, por isso querem-me ao seu lado! Algum tempo atrás quando ainda a geladeira estava ligada, salvara dois grãos de arroz doce e escondi o fato, que agora posso esclarecer para os que porventura lerem essa peça de acusação e até mesmo para mim. Obviamente os grãos de arroz não falaram comigo, não tinham bracinhos dependurados! Não procurem traços de loucura em mim! Explicarei para que esse relatório não seja desconsiderado tachando-me de lunático e desviando as atenções das investigações que certamente acontecerão. Retirava um pouco de sobremesa quando ao fechar a geladeira vislumbrei os dois grãos de arroz dependurados na borda da travessa, corpos projetados no espaço com apenas uma mínima parte em contato com o recipiente. Eu -agora sei- como parte e todo do Universo, portanto parte, todo e colega dos dois grãos de arroz, senti o apelo que eles/eu/universo lançaram acerca da energia que ali se gastava sem um fim útil. Abri novamente a porta, recolhi os dois grãos e os reuni aos outros que ao serem ingeridos, me forneceriam energia mais útil do que a desperdiçada ao permanecerem agarrados à borda da travessa! Raciocínio simplesmente lógico, tarefa impossível para um suposto demente.
 
Agora entendo que não vim por acaso, como me parecia, uma simples transferência burocrática. Fui enviado para neutralizá-los e tentar clarear seus caminhos. O Mal reside em Santo Antonio do Desamparo! O mundo tem que tomar conhecimento e atacá-lo pois está concentrado. O Mal aumentaria seu poder comigo ao seu lado? Mas como? O quê em verdade é minha casca humana que tanto querem e tentam preservá-la?
Agora sei e entendo minhas angústias humanizadas de ser um solitário que nunca teve uma namorada, nunca casou e nunca soube o que é ser pai. Minha missão era outra. Por isso nunca adoeci. Por isso me sentia diferente dos demais. E todos os que estão sob o domínio do Mal sentiam meu poder, por isso não se aproximavam, não me aceitavam e eu amargava a discriminação, solitário, deixado de lado até mesmo na escola, depois de tantos anos de serviço, para amanhecer no dia previsto para minha aposentadoria e desligarem-me como um aparelho obsoleto

Doutor Ernesto F. Wuller, psiquiatra Chefe:

“…J.C. 54 anos. Uma vida discreta, pacata, profissionalmente produtiva. Uma simples timidez que como uma bola de neve aumenta quando a burocracia fria o transfere para uma cidade desconhecida. E enquanto a vida rola encosta abaixo vai agregando mais e mais problemas de relacionamento social sem que os demais se importem com isso. Foi transferido porque não tinha família, agora não participa porque não tem ligações, raízes. Escolhem-se os amigos e amores como uma fruta no mercado, as que mais atraem esteticamente sem se importar com o conteúdo, as marcas mais conhecidas; o que não é atrativo ou conhecido fica marginalizado contemplando namorados de mãos dadas, rodas de alegres amigos, famílias sendo constituídas. O homem torna-se incompleto, sua casa não se constitui num lar, é apenas um abrigo. Reflui, interna-se, só olha para dentro de si, o entorno passa a ser indefinido, enevoado, disperso, impalpável. Torna-se respeitado por sua competência mas se transforma para os demais em uma figura jurídica, impessoal. Não há amigos ou amores e o trabalho substitui o lar, a sociedade é o simulacro de família. 
E de repente chega a aposentadoria. Desliga-se a chave da figura jurídica. Desaparece a família social, fecha-se a porta do lar-trabalho. E chega o despertar na manhã em que não há para onde ir, não é requerido, esperado, solicitado, seu nome não consta na lista de cidadãos produtivos. Não tem porque levantar-se da cama. Encontra a vida fechada para balanço. E é ele, sozinho, que terá que encarar esta contabilidade cruel. Não há o ombro de uma esposa, os risos dos netos que carimbam a vida plenamente vivida. Não há mais sonhos a serem sonhados. Sente que as paredes do fracasso começam a se aproximar para esmagá-lo e tem dois caminhos diante do nada quando olha para o passado e do nada quando encara o futuro: admitir a derrota, a incapacidade, a fealdade, a incapacidade de conquistar, enfrentando a tristeza, a depressão que já mostra sua cara e esperar a morte estoicamente ou optar pela vida, rebelar-se, rejeitar o fracasso, encontrar os vilões que não permitiram que recebesse seu quinhão de felicidade? 
E ele encontra facilmente o vilão, porque ele pode ser real, ele pode existir para todos nós que o adulamos, servimos, tentamos conquistar, enchemos-lhe de sorrisos e acenos mas é um monstro hipócrita, amoral, cruel, castrador, dissoluto, ditatorial: a Sociedade. Para assim vê-la, basta uma simples mudança de chave no intrincado cérebro humano…”

Sem dúvidas, este livro é uma coisa de louco…  Leia antes que a CIA o delete!